30.12.14

Os religiosos

Então Jó respondeu ao Senhor:Sei que podes fazer todas as coisas; nenhum dos teus planospode ser frustrado.Tu perguntaste: “Quem é esse que obscurece o meu conselho sem conhecimento?”Certo é que falei de coisas que eu não entendia, coisas tão maravilhosas que eu não poderia saber.Tu disseste: “Agora escute, e eu falarei; vou fazer-lhe perguntas, e você me responderá”.Meus ouvidos já tinham ouvido a teu respeito, mas agora os meus olhos te viram.Por isso menosprezo a mim mesmo e me arrependo no pó e na cinza.
(Jó 42. 1-6) 


O livro de Jó é uma novela fascinante. Sua presença no canon hebraico já representa muita coisa, por diversos motivos: Jó não é descendente de Abraão e, nem por isso, sua vida e sua fé deixa de ser exemplo para os judeus.
A presença do livro na Bíblia já parece traduzir a tensão sempre presente entre a ortodoxia teológica do templo de Jerusalém e outras perspectivas de fé que existiam no meio do povo. A estória de um fiel de Uz tensiona, sozinha, a fé judaica.
Mas o conteúdo do livro ainda faz mais.
Algumas coisas me chamaram a atenção em sua leitura recente.
Os amigos de Jó (Elifaz, Bildade, Zofar e até Eliu) são fiéis representantes da ortodoxia religiosa - que talvez fosse chamada de fundamentalista no nosso paradigma contemporaneo.
Jó, seu amigo, sofreu uma perda imensurável - família, bens e saúde. Encontra-se em profundo sofrimento, lutando por entender tudo o que aconteceu ao mesmo tempo em que pretende manter a sanidade e a fé em Deus. O que pretendem os amigos é convencer a Jó que ele é culpado por pecado, por isso Deus o castigou. Eles julgam o cenário de acordo com a teologia mais sistemática do seus dias. Afinal, o Pentateuco nos disse que, ao entrar na terra prometida, o povo foi submetido às promessas de bênçãos e maldições. As bênçãos resultariam do comportamento correto. As maldições são fruto do pecado (Dt 27 e 28). Se Jó está sofrendo, de acordo com essa teologia, só pode ser porque pecou.
Eu me lembro que uma das primeiras histórias que aprendi, sobre pecado, quando me converti, estava no livro de Josué e dizia que o povo sofreu uma derrota em Ai porque Acã havia pecado em Jericó (Js 6, 7 e 8). Ou seja: aprendi que as coisas dão errado porque estamos em pecado. Se resolvermos as coisas, abandonarmos o pecado e corrigirmos a vida, a benção de Deus virá sobre nós.
Outro formato contemporâneo dessa crença é a teologia dos galardões: se fazemos o certo, mesmo que não tenhamos recompensa aqui e agora, teremos na volta de Jesus. Nossa ação, logo, como o fazem espíritas ou os que creem na salvação por obras, é feita visando à recompensa.
Jó destrói essa teologia. E por isso, também, parece estar na Bíblia para se contrapor a ela. É o próprio Deus que diz, duas vezes, que Jó é fiel, honesto, leal, consagrado e que odeia a mentira (Jó 1. 8; 2. 1-3). Logo, o leitor do livro já sabe de início que Jó não sofre porque seja pecador, como punição pelos seus erros.
Mas não é isso que pensam os seus amigos religiosos. Eles são movidos por essa teologia ortodoxa. A verdade, para eles, vale mais que o apoio.
Que tristeza ver amigos assim (que são comuns)! Tudo que Jó poderia precisar era consolo, conforto, companhia. Acolhida. Pessoas que chorassem com ele. Tudo que ele encontra são amigos que tentam convencê-lo de que, se ele sofre, só pode ser resultado do pecado. Afinal é assim que ensina a ortodoxia. "Quem planta colhe!"
O último a falar, Eliú, parece que dirá algo diferente, mas reforça tudo o que foi dito antes, apenas enfatizando o "absurdo" de Jó pedir para que Deus lhe explique o que está acontecendo.
Jó não sofre porque é pecador. O sofrimento não é consequência de punição por pecado, nos lembra seu livro.
Por outro lado, o consolo é algo de que precisamos na hora da dor. Não cabe, nessa hora, a disputa para saber quem está certo, quem tem a melhor teologia, quem é mais santo - mesmo que essa seja uma constante no nosso mundo religioso.
Jó é surpreendido quando Deus finalmente aparece para o diálogo. Ele não responde os porquês do sofrimento! Jó se submete à ideia de que era incapaz de compreender tudo (Jó 42. 1-6).
Mas há duas coisas que não podem ser, também, deixadas de lado e que expõe a fragilidade da teologia dos amigos de Jó.
A primeira é que, ao contrário do que eles afirmavam, Deus se importa em vir conversar com Jó. Deus se importa em descer para se relacionar conosco. Se importa de vir pessoalmente dialogar conosco. Mesmo que não seja para dizer o que achamos que necessitamos, Ele vem a nós para nos lembrar que está conosco mesmo quando não parece estar.
A segunda: nós carecemos dos porquês para o sofrimento, mas nem sempre o sofrimento tem explicações. Para os sistemáticos amigos de Jó, como para muitos religiosos, a causa do sofrimento é o pecado passado (não é assim que creem cristãos e espirítas?). O livro de Jó nos mostra que mais do que explicar a dor, somos chamados a estarmos com quem sofre consolando-o em seu sofrimento. Porque nem sempre há explicações possíveis, não há palavras a serem ditas, não há relação de causa e efeito.

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